O Fiat 600 foi um dos carros mais populares da sua época e um dos ícones do construtor de Turim

Quando hoje se fala de automóveis autónomos com naturalidde e se admite que pode não faltar muito para o prazer de conduzir tornar-se uma memória, quando a mobilidade passa por outras soluções que dispensam o motor de explosão e podem mesmo “arrumar” o carro próprio, tem graça recordar estórias de outros tempos relacionadas com a nossa vivência automobilística.
Já passou mais de um século desde que o mundo passou a andar sobre rodas… motorizadas. Mas nem é preciso recuar tanto para termos uma ideia da voragem do progresso numa indústria tornada fundamental e que ainda alimenta uma das aspirações maiores de todo o ser humano – o automóvel.
As transformações recentes, feitas a velocidade vertiginosa, transportaram-nos para uma realidade em que a memória se vai perdendo. Está longe de ser um exclusivo do automóvel e, como está na moda, pode dizer-se que é transversal à sociedade. Fundamental, no entanto, é não perder a memória, seja para dar valor ao que temos como para exaltar a capacidade que nos trouxe até onde estamos e há-de levar-nos mais longe.
As estórias que se perdem na nossa infância são, quase sempre, as melhores páginas do álbum do progresso.
Ora imagine-se o jovem leitor e recordem os mais velhos que, há 55 anos, já se faziam férias no Algarve. Não havia um quilómetro de autoestrada, a província do Sul era um paraíso de boas praias, restaurantes populares (comia-se um bom lavagante em Sagres por 55$00, cerca de 30 cêntimos), meia dúzia de hotéis, muitas pensões, quartos para alugar,um punhado de estrangeiros curiosos.

As transformações recentes, feitas a velocidade vertiginosa, transportaram-nos para uma realidade em que a memória se vai perdendo

A viagem de automóvel, sob grande calor e quando o ar condicionado era mesmo um luxo, levava umas boas horas, e a Serra do Caldeirão constituía obstáculo considerável. E tanto que, imagine-se, o Fiat 600 novinho, orgulho da jovem família, para lá chegar precisava da ajuda de um garrafão de água, daqueles revestidos do entrançado da verga, também o material que fazia a asa e sustinha os cinco litros de capacidade. Era mesmo preciso! O termómetro da temperatura subia, a luz vermelha acendia e havia que parar! Um miúdo nunca mais esquece a abertura da tampa do radiador, feita com todo o cuidado e um pano protetor, o silvo que precedia a coluna de vapor, a sede do automóvel… E a viagem continuava, com a certeza de que a cena se repetiria no regresso.

O Dauphine foi um dos “best-sellers” da Renault. Motor atrás, era um quatro cilindros de 845 cc (Imagem: Arquivo Renault)

“Tem os pneus em baixo…”
Era o tempo, que duraria muito tempo, dos carburadores, da necessidade frequente de limpar velas, e platinados, ver o nível do óleo, mudar a correia da ventoinha, controlar o líquido da bateria, estar atento à pressão dos pneus e não esquecer o sobresselente, pois os furos eram comuns. Entre as revoluções da altura contaram-se os pneus de baixa pressão da Michelin estreados no Renault Dauphine da família – furavam menos, tinham outra capacidade de aderência, dada a “sola” mais larga. Foi um desatino, nos primeiros tempos. Eram as buzinadelas frequentes, os vidros que se abriam, até os “cabeças de giz”, os sinaleiros:
– Atenção, senhor condutor, tem os pneus em baixo!
Ai este progresso… que trazia a seguir, por exemplo, os amortecedores Koni, uma revolução no que se chamava estabilidade, as buzinas de ar, dois e mesmo três toques, e uma inacreditável poluição sonora, o fantástico gira-discos, que tocava os singles, num tempo em que comprar carro significava também pensar no rádio, na antena, e nas colunas, duas de preferência, para gozar essa novidade do estéreo, um luxo.
O progresso não parava, vieram as caixas de cinco velocidades, a “febre” dos faróis Cibié, depois as jantes em liga leve, foram-se os carburadores e veio a injeção eletrónica, e nisto passaram-se os anos, talvez dez anos, muito tempo como diz o poema cantado por Paulo de Carvalho.
Sucederam-se outras fases, mais tecnológicas, que os mais novos recordam e de que nem vale a pena falar, os tempos mais próximos que significaram cada vez menos romantismo nesta coisa do automóvel. O equipamento, e ainda bem, deixou de ser visto como um extra e, além de facilidades, trouxe outros níveis de segurança. Mas não foi fácil, talvez também porque o dinheiro era pouco, demorou a convencer disso muito boa gente com responsabilidades.
Hoje, entrar no carro só com a chave no bolso, carregar no botão da ignição, engrenar o D na caixa automática, arrancar sem pensar no travão de mão, anotar a data da revisão quando o computador avisa, lembrar a pressão dos pneus se a indicação surge no painel instrumentos, é comum no quotidiano dos automobilistas, que ainda têm o telefone, a internet, a navegação para facilitar a chegada a qualquer destino. Sobra apenas a preocupação de ter combustível no depósito… ou carga nas baterias se circula num automóvel elétrico, ou hidrogénio se a solução for a pilha de combustível.
Há 55 anos isto era ficção científica. Um filme em que nunca contemplávamos aquilo que hoje também esquecemos: às vezes estas coisas avariam. Poucas vezes, felizmente.
E como será daqui por outros 55 anos?

É difícil imaginar quando um automóvel autónomo até já passa as portagens da autoestrada.