Vai para 25 anos, coube-me entrevistar um homem muito especial. Mano Dayak de seu nome, tuaregue, etnólogo, seis meses senhor das areias – os franceses tratavam-no como príncipe do deserto –, a outra metade do ano parisiense cosmopolita (estudou nos EUA e em Paris), companheiro de Thierry Sabine na aventura do primeiro Paris-Dakar, pioneiro do negócio do turismo de aventura no Sara.
Foi este homem, falecido num desastre aéreo quando estas vidas já tinham sido trocadas pela liderança da guerrilha tuaregue – CRA, Coordenação da Resistência Armada – no Níger, que despertou em mim esse «bichinho» que ataca e marca, decisivamente, aqueles que um dia têm o sublime privilégio de contactar esse mundo de espaços a perder de vista, cenário de cinema, maravilha das maravilhas.
«Uma viagem ao deserto», contava-me Mano Dayak, «não nos mostra apenas a paisagem. O deserto é assim como uma maneira de cortar com tudo, uma imagem forte, um convite à reflexão interior. Qualquer coisa que também tem a ver com as pessoas que, não sendo exatamente místicas, procuram-se, procuram qualquer coisa mais, diferente, pessoas que têm sempre alguma poesia na cabeça».
Mano Dayak: “O Deserto é assim como uma maneira de cortar com tudo, uma imagem forte, um convite à reflexão interior”
Na altura, o deserto começava a ser uma moda, pelo menos por cá, onde a maioria não sabia já haver qualquer coisa como 25 mil pessoas, por ano, a passearem-se por esse cenário que pouco tem a ver, afinal, com o imaginário criado pelo cinema e por aquelas aventuras que enchiam as memórias de quem ía nos 40 anos e continuam a tentar muito boa gente. Foi isso que, pouco depois, tive a felicidade de descobrir – com a ajuda das lições do meu amigo Mendes Nunes –, numa das mais fantásticas viagens que a imaginação pode conceber: 20 automóveis de todos os dias nas mais incríveis pistas (?) do Sara argelino. Foi “A Pista dos Leões”, organizada pela Peugeot. Fiquei então a saber que o deserto está longe de ser esse imenso mar de areia, as dunas de todas as formas, uma luz deslumbrante. Fiquei então a saber que as miragens existem, mas também que a paisagem nos reserva outras surpresas tremendas: caminhos de tormenta a perder de vista, mares encapelados com ondas de pedra, «estradas» atapetadas de verdadeiros estiletes, como se fossem camas de faquir, árvores perdidas no meio de nada, a surpresa de encontrar gente onde se espera tudo menos uma réstea de vida. E, mais extraordinário de tudo, fiquei a saber que o deserto proporciona uma paz inigualável e inesquecível com aquele silêncio terrivelmente reconfortante – o máximo que é o nada, o fantástico que é o barulho do silêncio.
Durante uns tempos, «devorei» o que pude sobre o deserto. E mal pude, voltei. Continuo na mesma: leio todas as linhas sobre experiências no deserto e, sempre que posso, lá estou. Nos tempos recentes em Marrocos, pois a situação desaconselha grandes aventuras por outras fronteiras do Sara ou do Teneré. Mas já chega… O telemóvel não funciona, dificilmente se consegue estar verdadeiramente só, mas, ainda assim, nada há igual. É uma experiência a não perder, são umas férias em que até sabe bem o cansaço das grandes tiradas de jipe, a pensar no conforto daquelas noites em que o frio cai à medida que o sol se põe, no deslumbramento daquelas manhãs em que o calor «sobe» à medida que cada nesga de Sol desponta no horizonte. É tudo o que a imaginação permite – tal como me explicou Mano Dayak.
O vídeo que aqui fica é uma das várias homenagens à memória de Mano Dayak “guardadas” no Youtube.