O tempo passa muito depressa e poucos se lembram ou sabem o que era o Grande Prémio de Macau (GPM) e como se tornou possível o evento mediático – e um os maiores cartazes da cidade – em que se transformaram as corridas no Circuito da Guia, ainda um dos mais emblemáticos percursos citadinos do mundo.
Lembrar os apaixonados – Macedo Pinto, Carlos Silva, Paulo Antas e capitão Cruz – que escreveram para o Hong Kong Automobile Association (HKAA) a pedir ajuda para organizar o que eles nem sabiam bem o quê, desde que metesse automóveis e competição, é pré-história. Recordar a surpresa do suíço Paul du Tois, pioneiro do automobilismo na Ásia, que, na volta da carta e qual visionário, depois de percorrer o circuito, lhes disse “vocês têm aqui um traçado tão bom como o Mónaco”, sabe a história de ficção. Imaginar a confusão que foi o primeiro Grande Prémio em 1954, com uma mistura incrível de automóveis num circuito com estradas poeirentas, público aos magotes e bancadas de bambu, pode parecer enredo de banda desenhada. Tanto mais que até o conta voltas da “torre de controlo” funcionava com folhas de calendário…
Todas as fotos foram cedidas, em 1981, por Macedo Pinto e publicadas num opúsculo intitulado “GP Macau: uma Tradição no Oriente”, edição do Leal Senado, que o malogrado fotojornalista Eduardo Tomé me convidou para produzir com ele
Este quadro de amadorismo e paixão, com horários por cumprir, uma cidade com a vida virada do avesso, completamente alterada durante quatro dias, falta de espaço para parquear os automóveis e arrumar as estruturas que arrastam para a competição, e ainda as corridas de motos (é a única prova no mundo em que isso acontece) – este quadro resistiu a tudo. Sobreviveu mesmo a casos complicados – como aquele do abatimento sobre a pista, durante uma corrida, de uma passadeira de peões, no final da década de 60, e que, milagrosamente, nem causou vítimas. E, pior, o acidente de 1974, na sequência de um despiste, esse, infelizmente, com consequências trágicas, a morte de uma criança e vários feridos.
Riscados do “mapa”
Há, no entanto, dois momentos importantes – um decisivo, outro determinante.
Decisivo foi este acidente e aquilo que originou. As questões de segurança puseram em causa a continuidade das corridas em Macau, quando pouco mais havia do que fardos de palha nos pontos mais problemáticos, cordas para suster o público e toda uma estrutura amadora, incipiente e com reduzida capacidade de resposta.
O veredito dos responsáveis desportivos perante este quadro – e quando os circuitos citadinos eram constantemente postos em causas – foi terrível: o GPM esteve riscado dos calendários e mostrou-se então decisiva a intervenção das autoridades. O governador Garcia Leandro veio a Lisboa com Salavessa da Costa (então comandante da polícia e um dos homens que dava suporte às corridas). Estiveram no ACP e aí um encontro com César Torres (já figura prestigiada nos bastidores do automobilismo) veio a permitir levar a Macau um dos inspectores da então FISA (Federàtion International du Sport Automobile), o holandês John Corsmith. Foi ele quem delineou um projecto de melhoramentos em termos de segurança capaz de manter o Circuito da Guia utilizável, através de profunda intervenção a que as autoridades locais se prestaram garantindo avultado investimento para a época.
Os resultados pouco tardaram: o GPM passou a integrar o “Yellow Book” da FISA, e conquistava lugar nos calendários oficiais, o terceiro fim-de-semana de Novembro, data que ainda hoje se mantém! Foi uma das primeiras grandes vitórias! A outra vinha três anos depois, com a finalização do projeto de John Corsmith: o estatuto de prova internacional e, definitivamente, um futuro assegurado.
Quando se recua no tempo para recordar como eram as corridas no circuito da guia em 1981, aquilo que, entretanto, se fez parece um milagre
Visita importante
O 28º Grande Prémio de Macau, em 1981, marcou, 16 anos depois, novo momento importante, numa altura em que ainda se contavam pelos dedos os jornalistas europeus presentes na prova, apesar de muita gente famosa já ter passado pelo traçado da Guia. A organização, à altura a cargo do Leal Senado (e tutelada pela perseverança de Rogério Santos), conseguiu lever às corridas um convidado muito especial, Jean-Marie Ballestre, então presidente da FISA , que viajou acompanhado por César Torres, seu vice-presidente e então já responsável máximo pelo Automóvel Club de Portugal.
Ballestre, figura controversa e homem pouco dado a elogios, deu-me então uma entrevista e, na sua rudeza, disse-me, de chofre, que tinha encarado a viagem como “um simpático convite”, mas também que ficara impressionado com o que viu. “A organização tem qualidade, os esforços desenvolvidos não podem passar despercebidos. Vim encontrar em Macau o ambiente comum a qualquer Grande Prémio que se disputa na Europa”.
Vindas do senhor todo-poderoso do desporto automóvel, estas palavras eram importantes, pareciam premonitórias – e, à distância, julgo terem sido decisivas, já que houve uma série de reuniões que trouxeram boas ideias e, sobretudo, realizáveis. Os sonhos, ao tempo, eram outros. Muitos não se concretizaram, é verdade, mas encontraram-se soluções e o Grande Prémio de Macau aí está a provar que havia de facto lugar para uma série de corridas muito especiais no Oriente, num dos mais competitivos e difíceis circuitos citadinos do mundo – um dos poucos que resiste…
Desafios vencidos
E para que ele tenha resistido foi preciso um constante empenho e muito trabalho na modernização das estruturas, no apuro de uma complicada logística, enfim vencer uma série de desafios. E quando se recua no tempo para recordar como eram as corridas no Circuito da Guia em 1981, aquilo que, entretanto, se fez parece um milagre! É que foi preciso, designadamente, ganhar terreno ao mar para construir uma torre de controlo, novos “poços” um parque que permitisse encarar o futuro sem problemas.
O presidente da FISA já tinha sido posto ao corrente dos esforços que estavam a envidar-se no sentido de concretizar os novos melhoramentos imprescindíveis e que acabaram por receber “ luz verde” junto dos responsáveis pelo território então sob administração portuguesa. E César Torres, por sua vez, disponibilizou toda a ajuda em meios humanos do ACP para dar suporte às necessidades da organização. Conjugavam-se assim as vontades para concretizar o sonho de Rogério Santos, presidente da Leal Senado, promover uma outra imagem de Macau e capitalizar o Grande Prémio como um cartaz de enorme valor, tanto que, provavelmente, só poderia ser apurado se um dia acabassem as corridas…
E as corridas não acabaram, ganharam importância, conquistaram espaço mediático, com relevo para a televisão, trouxeram grandes nomes ao Circuito da Guia, Senna e Shumacher, por exemplo, à cabeça de uma lista de campeões – e aí está o Grande Prémio, cheio de vitalidade e com mais uma série de corridas importantes, muita emoção em perspetiva, pilotos consagrados e jovens promessas num competição a que nem faltam títulos em disputa.
Passaram muitos anos, a cidade é outra, mudou muita coisa, não se perdeu a paixão! E hoje, porque outros houve batalhando pelas corridas no Circuito da Guia, o Grande Prémio de Macau até conta com um interessante museu que faz parte do roteiro turístico da cidade.
As apostas valeram a pena – foram ganhas! Apesar de ser cada vez mais difícil um programa “limpo”, sem incidentes que parem tudo, atrasem e reduzam corridas, como confirmei no ano passado quando contei as incidências da prova no “Tribuna de Macau”. O GPM, mais do que as corridas de velocidade, parece, afinal, uma prova de resistência…
E no terceiro fim de semana de Novembro, mais um Grande Prémio de Macau!