A Renault está a celebrar 20 anos consecutivos de liderança no mercado português. É obra! E não pode ser fruto do acaso. Mas há uma história por lembrar, o Projeto Renault. Ora, até que ponto as importantes vantagens de mercado concedidas pelo Governo à então Régie abriram o caminho a este sucesso?
Em 1980, no âmbito daquilo que ficou conhecido como o Projeto Renault, a marca francesa, em contrapartida de consideráveis investimentos, assegurava, com o beneplácito do Governo português, uma quota de 35 por cento do mercado de veículos de passageiros, durante dez anos. Era a chamada contingentação, uma vantagem importante que deixava à concorrência quotas de importação e direitos aduaneiros de CBU (Completely Built Unit, automóveis montados) e CKD (Completely Knock -Down, automóveis em peças prontos para montagem) regulados em função da evolução do seu próprio mercado.
A Renault, que investiria forte em Setúbal e Cacia e ainda tinha a velhinha fábrica da Guarda, reinava, sob a batuta de Louis Brun, o qual, reza a história, permitiu nenhuma ou pouca intervenção da sede dos seus negócios. A concorrência, que sempre contestou a situação, suava as estopinhas enquanto aumentavam os Renault nas estradas portuguesas (eram os tempos do R5, depois também dos R9 e R11).
A partir de situação de privilégio, a Renault soube construir, desenvolver e, sobretudo, manter e afinar uma máquina que tem sabido potenciar sucessivos ciclos de produto, sempre a ganhar.
É facto que a Renault – então ainda a participada pelo Estado francês RNUR (Régie Nationale des Usines Renault) – conquistava mercado, mas também criava anticorpos entre aqueles para quem a maioria dos automobilistas portugueses eram “quase obrigados” a comprar os carros com o emblema do losango… “Assim, também eu!” – diziam-me, então, a propósito da liderança da Renault e dos seus números invejáveis, alguns responsáveis pelas marcas da concorrência que tiveram de adaptar-se a esta situação excecional. E foi dura a vida para eles.
As mudanças da CEE
Entretanto, veio a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986 e depressa tudo começou a mudar. As vantagens da Renault não chegaram a durar os dez anos acordados – em 1988 as importações de CBU europeus foram liberalizadas e, pouco depois, aconteceu o mesmo com os usados, originando uma “tempestade” que muitos recordarão. Philippe Graciet, em 1989 vindo da Colômbia para dirigir a empresa, disse então que era preciso adaptar o sistema Renault a este “tsunami”…
E, importa referir, as facilidades também acabam por criar problemas e sucedeu que o endividamento da rede Renault ” tornou-se demasiado elevado num mercado protegido onde as vendas estão asseguradas”, como escreveu ainda Philippe Graciet*. As coisas também não eram exatamente fáceis para quem vinha do hábito normal de ganhar sem esforço especial.
Esta é apenas uma página da história que contempla, depois, momentos difíceis – e polémicos – como o fecho da fábrica de Setúbal, a que só faltava a estampagem para ser unidade de primeira linha, e ainda a venda das históricas instalações da Guarda, que vinham de 1963. Sobrava Cacia – afinal, o que resta desse plano gizado noutros tempos e face a realidade bem diversa. E Cacia está longe de ser uma fábrica qualquer, emprega 1400 pessoa e hoje, abandonados os motores, produz caixas de velocidades que não servem apenas a marca francesa.
Antes disto não havia Renault? É claro que sim, com números interessantes e alguns modelos de assinalável sucesso na história do mercado nacional. Pode lembrar-se, recuando aos anos 50, o icónico “Joaninha”, mas as coisas passam a ser realmente importantes, mais tarde, nos anos 60/70, com o Dauphine, o emblemático 4L, o R8 (“empurrado” pelo êxito desportivo do inesquecível Gordini), o R 10, e o original familiar que foi o R16. Modelos como estes permitiram que a Renault, antes da contingentação, tivesse alcançado resultados interessantes sob a égide da UTIC, o importador da marca.
Travessia do deserto
Houve, naturalmente, uma espécie de travessia do deserto, no período pós Projecto Renault. Entre 1992 e 97 a marca francesa viu-se apeada da liderança do mercado nacional (mandou cinco anos a Opel – reinavam o Corsa II e a carrinha Astra – e no outro a Fiat), mas facto é que, depois disso, nunca mais largou o lugar cimeiro do pódio. Notável, sem dúvida, porque 20 anos são vários ciclos de produto e não se afigura fácil assegurar o êxito de todas as renovações. Houve sempre modelos menos felizes, mesmo alguns desastres, mas isso não impediu a Renault, agora em confrontação aberta com a concorrência, de contar sempre com o carro certo para o especial mercado português (Clio e Megane desempenharam, como ainda hoje, papel importante).
Cereja no topo do bolo foi o resultado de 2017, com o Clio consagrado como modelo preferido dos portugueses e Mégane, Captur, ZOE, Kangoo ZE e Trafic noutras lideranças. Recordes nas subsidiárias, Dacia em alta (é a quarta marca mais vendida no mercado dos particulares)… Muitas razões para celebrar, afinal é o melhor ano depois de 1989!
Dizer que tudo isto se deve às facilidades conquistadas através do Projeto Renault parece, à distância de quase 40 anos, despropositado. Verdade é que, a partir de situação de privilégio, a Renault soube construir, desenvolver e, sobretudo, manter e afinar uma máquina que tem sabido potenciar sucessivos ciclos de produto, sempre a ganhar. Foi esse o “milagre” da Renault em Portugal!
*Fonte: “Renault, Mais de 50 Anos em Portugal”, edição Renault Histoire